Um blogue sobre a arte de doar o corpo à docência. Uma dádiva divertida, cansativa, emocionante mas nunca, nunca monótona.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
# 8 Recompensas
Por muito que gostemos de
miúdos, que os achemos “o melhor do mundo”, há momentos de desespero. Perder as
estribeiras e desatar aos gritos – chamemos-lhe antes usar “a voz de teacher” -, parece a única forma de pôr
ordem na chinfrineira. Resulta. Mas a expensas das cordas vocais, da compostura
e boa educação. Para evitar a guerra dos decibéis tinha de desenvolver alguns
truques. A estratégia da recompensa pode ser eficaz, embora, já quase nada seja
cenoura apetitosa o suficiente. Elogios, estrelinhas e smiles não resultam com muitos, e não dá para andar sempre a
comprar guloseimas. Até porque nunca se sabe se algum menino é alérgico, ou se
os pais são contra, seja por que razão for. Em desespero de causa, numa das
turmas mais barulhentas que tive, lembrei-me de usar como engodo umas
figurinhas com animais. Vá-se lá saber porquê os miúdos ficaram doidos com a
perspetiva de ganhar uma daquelas estampas. Sempre que os lembrava que tinham
de se comportar para levar uma, o silêncio era total. Por frações de segundos,
claro. Cumprindo o prometido, no final da aula anunciei os vencedores. Com
orgulho mal disfarçado, os seis distinguidos receberam o merecido prémio. A
seguir, foi o inferno. Lágrimas, clamores desesperados, apelos chorosos por
justiça – enfim, uma cacofonia atroz de sofrimento infantil. TODOS achavam que
se haviam comportado exemplarmente. TODOS esperavam ser contemplados com o
animalzinho! Sem ter figuras para todos, senti-me a pior pessoa do mundo. Nunca
mais! Antes ter de levantar a voz do que causar tamanha comoção.
terça-feira, 17 de setembro de 2013
#7 Instruções
Sempre achei que era
suficientemente clara quando tinha de dar instruções. Comunicar bem devia ser
um dos meus pontos fortes. Fui jornalista, consultora de comunicação, trabalhei
em publicidade… enfim, comunicar é o meu nome do meio. Errado. Não se pode
pensar que sabemos mesmo comunicar se nunca experimentámos uma audiência
infantil. O caos pode instalar-se só porque uma simples instrução foi mal dada.
Imaginem que querem que os meninos copiem qualquer coisa do quadro. Parece
fácil. Na minha frescura de caloira, pedi que copiassem o que tinha escrito,
para a folha que tinha acabado de distribuir. Simples e direto. Para o grupo,
foi como se tivesse falado aramaico. O burburinho subiu de tom, os que não
sabem esperar (a maioria) levantam-se e de todos os lados bombardeiam-me com
perguntas. “Ticher, a folha é assim ou assim?” E via muitas mãozinhas com
folhas no ar a girar horizontal e verticalmente o papel. Para mim era
claríssimo que se escreve com a folha na vertical. Para os miúdos não era.
Depois eram as questões sobre se usavam lápis ou caneta. Ou caneta de que cor.
Se podiam usar canetas de feltro ou apenas lápis de cor. E que tamanho deviam
ter as letras? Não saberia eu que o papel branco não tem linhas a servir de
guias? Silly me. E ainda mais
angústias sobre se deviam escrever com letra manuscrita - de mão, como aprendi
ser o termo -, ou em letra de máquina… Os
mais desenrascados começam a fazer linhas nas folhas com as réguas mas já os
outros guincham que a “ticher” não tinha dito que era para se fazerem linhas… Oh God!, tirem-me daqui.
sábado, 14 de setembro de 2013
#6 Nomes
Confrontada com dez turmas, um
dos desafios era memorizar o nome daqueles catraios todos. Nunca quis ser
daqueles professores que passam o tempo todo a apontar e a dizer coisas como:
“A menina lá do fundo. Sim, a de rosa. Não, não, a colega do lado.” Saber quem
era quem, era ponto de honra. Claro que etiquetas de nome à frente de cada um
ajudavam. Fiz brilharetes nas primeiras aulas dirigindo-me a cada um sempre
pelo nome. “Maria, estás a perceber?”. A Maria não respondia. Fingia que não
era nada com ela. Repeti a pergunta. Nada. Dirijo-me ao seu lugar e pergunto
novamente, olhos nos olhos, com calma e com um sorriso de pedagoga
experimentada: “Maria, querida, estás a perceber o que é para fazer?” Lá acaba
por responder, tímida e sem me olhar muito a direito: “Sim, ticher”. Volto para a frente da classe.
Nova interpelação à Maria, e repete-se o silêncio incomodado. Claramente aquele
anjinho de olhos azuis e caracóis louros pelos ombros era acanhado. Tinha de
conseguir pô-la à vontade. Rápida no raciocínio, reparo que na sua etiqueta
estava “Maria Inês”. Perspicaz, achei ter percebido a relutância da menina.
“Deve estar habituada a ser tratada por Inês!” E, se bem o pensei, logo o
declarei, contente comigo própria e em frente de toda a turma: “Ah, preferes
que a teacher te chame Inês, é?” E
diz uma vozinha sumida: “Ticher, eu
sou o Flávio. A professora de música é que me mudou de lugar”. Mas claro! Se tivesse
um buraco… Trocar o nome ainda passa, agora o sexo da criança?! Vá lá, ao menos
parecia-se com um anjo, e os anjos, esses, não têm sexo.
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
#5 Participar
Com as apresentações percebi de imediato que os pequenos ADORAM falar de si. Eu, eu, eu… basta dar-lhes uma oportunidade e não se calam e como são muitos na sala, dar a volta a todos para dizerem de sua justiça pode ser interminável. Esta geração já nasceu a comunicar, com os colegas, com a professora, sozinhos. Falam, falam, falam… Quando eu andava na primária, por muito que fossemos faladores, não tínhamos esta apetência pelo protagonismo. A maioria das vezes queríamos era que nos deixassem ficar no nosso canto sem nos perguntarem nada. Hoje, quando se pede um voluntário para o que quer que seja, a turma toda lembra o burro do Shrek “Pick me, pick me”. Parece que todos querem opinar, participar - seja lá no que for -, o importante é dizer coisas. Pergunta-se onde passaram as férias e, de repente, uma simples ida à praia transforma-se numa saga islandesa! Demorei um pouco a dominar a técnica de os calar e dar a vez a outro. De novo, as regras do mundo lá fora não se aplicam. Gentileza e boa educação para interromper as intervenções não são lá muito eficazes. Há que ser firme e incisiva: “Pronto, já percebemos. Agora deixa ouvir o colega do lado.” E com rispidez suficiente para que o impenitente falador não levante novamente a mão, ou a voz, para continuar o testemunho. Quando conseguem retomar a palavra, por distração ou indulgência minha, há sempre um coleguinha diligente a denunciar o pecadilho: “Ele já falou, ticher! Já não é a vez dele!” Oiçam-me a mim, oiçam-me a mim. Nem que seja para delatar.
terça-feira, 10 de setembro de 2013
#4 Apresentações
Arrumada a questão dos nomes,
quis passar a outro tópico. Mas nessa momento a grande curiosidade era a minha
altura. Sou muito alta e no meio daqueles seres parecia ainda maior. A pergunta
não se fez esperar: “Quantos metros tens?” Tendo sido sempre sensível quanto ao
tópico, naquele momento senti-me mais que nunca uma espécie de Gulliver no meio
de Liliputianos. Respirei fundo e respondi à altura da indiscrição: “Pr’aí uns
3 metros”. “Ohhh!” foi o murmúrio. Mas logo outra menina lá atrás dispara: “A
minha mãe é maior que tu, deve ter uns 4!”. Pois. A noção da realidade em
miúdos de 6-7 anos é mínima, mas o sentido de competição já está bem
aguçadinho! Perdido o interesse nos meus metros de altura viraram-se para o
item sensível seguinte: a idade. Sei que já não sou nova, mas gosto sempre de
pensar que pareço mais jovem. Entre adultos manda a etiqueta que nunca se
pergunte a idade a uma senhora. E eu já estou naquela idade em que não podendo dizer
um número abaixo de quarenta, agradeço a atenção da discrição. Mas eu não
estava entre seres educados. E a insistência da pergunta levou-me a fazer a
estupidez de rodear a questão, devolvendo, com uma pontinha de coqueteria, a
pergunta: “Vamos lá a ver então, hum, quantos anos é que me dão?”. “50?” “58?”
ouviu-se. Em cheio no ego! Esbocei um sorriso amarelo. “Não, tenho 67!!”. Diz
uma espertalhona: “A minha avó também é assim velha”. Não sei se foi a minha
cara, mas apressou-se a acrescentar: “Mas tu és mais bonita”. Vá lá, safou-se.
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
#3 Estreia
Acostumada a trabalhar com adultos,
educados e cultos, a passagem para interlocutores abaixo dos 10 anos foi um
choque. Lidar com miúdos é uma surpresa constante e se achamos que já vimos de
tudo, enganamo-nos. Regras básicas da interação social? Esqueçam. Os miúdos não
são adultos em miniatura nem fazem ideia do que polimento, ou hipocrisia, se
preferirem, possam ser. Lição número um: estar preparada para as perguntas mais
indiscretas e as respostas mais inesperadas!
Comecei por pedir-lhes que se
apresentassem e apontei para o menino na primeira fila. Olhando confuso
perguntou: “O que é apresentar?”. Pois é. O processo de adequar o meu discurso
normal à faixa etária ia requerer algum treino. De repente tinha de eliminar
uma série de palavras e maneirismos de linguagem e sintonizar numa versão de
português para principiantes. Após uns segundos de desconcerto, refiz a pergunta:
“Os nomes, vamos dizer os nossos nomes”. Começo eu. Sou a teacher Isabel.” Logo um retorque com um sorriso de satisfação:
“Olha, a professora da minha mana também se chama ticher!” Tive de me conter para não me desmanchar a rir. Depois de
esclarecida a coincidência veio o regozijo de um menino cuja mãe também era
Isabel. Depois outro, desta feita era a avó, outro a tia, a prima, a vizinha….
A lista era interminável e sem saber muito bem como interromper aquela torrente
de alegria e frenesim pela quantidade de “isabéis” conhecidas pela audiência
acabei por perder quase o triplo do tempo que tinha previsto para o tópico: “Os
nossos nomes”.
domingo, 8 de setembro de 2013
#2 Ensaios
Trinta anos depois das aulas imaginárias, e fruto de uma reviravolta na minha vida, vou entrar pela primeira vez numa sala como “a professora”, ou antes como “a teacher”. Nesse dia, apesar da aparência controlada e profissional, imagino eu, estava aterrorizada. Vinte criaturinhas sentadas em cadeiras mini olhavam-me curiosas e expectantes. Now what?
Nas semanas anteriores à minha estreia
havia devorado quilos de informação sobre pedagogia e dicas sobre a melhor
forma de lidar com o primeiro dia. Esperava conseguir assimilar em poucos dias
o básico para sobreviver como professora principiante de crianças do primeiro ciclo.
No meu otimismo, achei que não devia ser assim tão complexo. No currículo tinha
já um curso para formadores com valiosas instruções pedagógicas e, afinal, já
era mãe há alguns anos. Não devia de ser assim tão diferente, pois não? Amigos
“especialistas” em educação - basicamente qualquer pessoa que já tenha ouvido
falar em crianças – desdobraram-se em conselhos e táticas para bem começar o
ano letivo. Comecei a perceber o que sente um treinador de futebol e no meio de
tantas e tão bem intencionadas recomendações tentei alinhavar a minha
estratégia. Planeei a primeira aula cuidadosamente. Até ensaiei algumas frases
com efeito e um quê de humor. Imaginei o efeito nos alunos e nas réplicas que
lhes daria. Tudo perfeito no papel. Depois veio a realidade. Sobreviver a uma
sala cheia de miúdos irrequietos ia requerer muito mais que teorias.
sábado, 7 de setembro de 2013
#1 Vocações
Havia
os que queriam ser polícias, astronautas ou bombeiros. As meninas deliravam
imaginando-se modelos ou atrizes. Eu queria ser professora. Não sei muito bem o
que encontrava eu de tão fascinante em tal ocupação, mas era professora que
dizia querer ser. Alinhava as bonecas, e a minha irmã mais nova, e toca de lhes
debitar arengas que imaginava serem próprias do ofício de ensinar. Ainda sem
saber ler ou escrever agarrava em livros e descodificava-os à minha maneira,
obrigando a audiência a ouvir-me. As bonecas nunca se queixaram e os sorrisos
felizes eram recompensa suficiente. Podia até castigá-las, e nem isso esmorecia
o semblante radioso. É claro, não gostava de as castigar. Ou se calhar, só um
poucochinho. Mas que raio de professora seria eu se não soubesse impor a
disciplina? E depois, era para o bem delas que o fazia. Era meu dever incutir
naquelas cabecinhas ocas o conhecimento. Fosse lá isso o que fosse. E parte do
encanto de ser “a professora” era poder mandar. Receio que os trejeitos da
minha irmã não fossem sempre tão prazerosos quanto os das colegas, mas em todas
as classes tinha de haver a menina malcomportada. A bem ou a mal, achava que a
conseguiria convencer da importância de estar quieta, de aguentar os monólogos
sem fim e a concordar sempre com o que a “professora” dizia. A coisa quase
sempre descambava em gritos, puxões de cabelo e na mana mais pequena a correr
para a mãe a fazer queixinhas, acabando eu a ter de ir pregar para outra
freguesia. Ainda tentei o mano mais velho, mas esse já tinha outra escola e
quem acabava a fugir era eu.
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