Um blogue sobre a arte de doar o corpo à docência. Uma dádiva divertida, cansativa, emocionante mas nunca, nunca monótona.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
# 17 Mundos
Indagar sobre os conhecimentos prévios de inglês, falar
de Londres e do Reino Unido e claro, saber se algum dos meninos já esteve em
Inglaterra são perguntas obrigatórias. Cada turma é um mundo. Se em algumas ter
ido a Londres não é nada de especial, noutras é uma fantasia. Nas turmas de
bairros mais abonados são vários os miúdos que já viram o Big Ben e o Palácio de Buckingham ao vivo. Falam entusiasmados dos
guardas da rainha e das fotos que tiraram junto aos seus ídolos no Madame
Tussauds. Mas são as experiências em hotéis com pequenos-almoços gargantuescos
que mais fazem sonhar. Em turmas de bairros pobres as experiências são
diferentes. O idílio turístico é substituído por uma imagem de local onde se
ganha a vida. Raros são os que já lá foram, mas quase todos têm um parente ou
um vizinho que lá trabalha. A família da Rita está de malas aviadas e parte no
final do segundo período. A Camila, do primeiro ano, entusiasmada com o tema
anunciou que já tinha vivido em Londres. Instei-a a partilhar a experiência.
“Boa, Camila! Então já sabes falar algumas coisas em inglês? E que viste? O Big Ben?”. Divertida, exclama: “Ó ticher, a mãe disse que era pior que
Cabo Verde. Viemos embora que eram só ratos em casa!”. Consternada, veio-me à
mente o Of mice and men, mas a gargalhada
geral dissipou o neorealismo steinbeckiano. Okay, eram ratos, mas eram ratos londrinos.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
# 16 Valentine’s
Roses are red/ Violets are blue/ Sugar is
sweet/ and so are you...
Os miúdos vibram com o
Valentine’s
Day. Por mais que tentemos transformar a ocasião numa celebração da
amizade e amor à família, eles querem mesmo é falar de namorados. Nos
cartões que improvisamos,
os corações e muitos “I love you” raramente são para os pais ou amigos. A
Andreia,
6 anos, confidencia-me orgulhosa: “Eu tenho um namorado, é um preto
(sic).
Chama-se João.” Está feliz e nas tintas para o politicamente correto. A
Catarina, também. Tem dois namorados e precisa de um cartão extra. Já a
colega do
lado resolve o assunto colocando o nome dos vários namorados
no mesmo postal. Rendo-me. O Acácio, para ser ainda mais avançado,
declarou que
era casado e tinha cinco filhos(!). Não querendo explorar o tema,
disse-lhes apenas
que meninos pequenos não podiam casar. A Taíssa concordou “Só aos
catorze, ticher. A minha irmã já tá prometida mas
só pode casar quando for grande”. Aos catorze, portanto. Esquecia-me que na gipsylandia
as coisas eram ligeiramente diferentes. Calei-me. Mas a data é propícia às
perguntas indiscretas: “Também vais
fazer um cartão para o teu namorado?” Respondo “Eu não tenho namorado”.
Espantados: “Não?!” Diz o mais sabido: “Claro que não, os velhos não têm
namorados, são casados. Não é?” Explico que nem sempre é assim e choco-os ainda
mais com a revelação que também não era casada. O que fui dizer! O Acácio olha
para mim e diz ”Isso é muito estranho! Tens um filho e NÃO és casada?” Velha e
ainda por cima sem um marido, could it get
any worse? Hey, kids! Leave this teacher alone.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014
# 15 Insultos
Há
aqueles momentos caóticos.
Quando de repente uma coreografia se descontrola e há miúdos pelo
chão, outros empinados nas mesas e os restantes num moche ao som do “Old
MacDonald had a farm”. Ou quando um projeto coletivo com tesoura e cola
acaba
numa sessão de cabelo cortado, cola nas mãos e roupas arruinadas. Nestas
ocasiões suspiro pela disciplina militar. Lanço uns berros aterradores e
uns
velados vitupérios à turba. Mas se na recruta insultar os magalas é
forma de
os disciplinar, na escola temos de ser mais subtis. Lá se me escapam uns
contidos “Tontos”
ou “Criaturas”. Mais ofensivos no tom sibilado com que são pronunciados
do que na substância propriamente dita. Ainda assim, há dias, uma menina
indignada responde-me prontamente: “Não sou criatura
nenhuma, isso são os animais”. Ups! Ciente do deslize e já a ver a
participação
do encarregado de educação, questiono filosoficamente: “Então não somos
todos
criaturas?” Perante o arzinho pouco convencido da ofendida, acrescento
em tom melífluo:
“Criaturas. [pausa dramática] de Deus!”. Ainda pensou um pouco antes de
assentir: “Ah, isso somos”. Safei-me. Até porque sabia dos antecedentes
religiosos da sua família. Agora quando me saiu um desesperado “Sua
monstra...inha” para a criatura que tinha cortado uma madeixa à colega
da
frente, a surpresa foi ouvir um entusiasmado: “Olha, monstra é o que a
minha mãe chama à
namorada do meu pai.” It runs in the family!
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