sábado, 4 de março de 2017

# 38 Tolerâncias


[AVISO: esta crónica pode ferir almas mais politicamente corretas]
 
Os preconceitos e os estereótipos são um terreno minado a exigir muito contorcionismo, pinças e cautelas. Por mais que queiramos fugir a rótulos nem sempre se consegue. Chamei a um menino que estava na converseta “senhor Benjamim” e ele muito sério “Atão ticher?! Senhor, não. Sou cigano!”. Ups. Sem perceber muito bem pergunto: “Mas os ciganos não são senhores também?” Diz o Renato com muita paciência: “Ai! Os senhores são vossemecês. Eu também sou cigano. O João e a Felisbela são dos tendeiros.” Pois, não se vê logo?
A cor da pele pode ser um tópico mais melindroso. Sempre que se fala das cores é certo que há sempre aquele que resolve aplicar os conhecimentos adquiridos. “Ticher, o Santiago chamou-me black!”  “Não ligues. Se tu és black ele é white”. “É mentira! Ele é cor de pele.” Sorrio. “Tu também, Aícha”. “Não sou nada. Eu sou brown”. Nuances.
E como desfazer a ideia que os meninos não podem gostar de brinquedos de meninas? Se quisermos enfurecer um menino é sugerir que ele gosta de princesas, ou de barbies ou, supremo sacrilégio, de cor-de-rosa!
Os preconceitos estão tão enraizados que um dia diz-me uma assistente operacional, vulgo contínua, “Ai professora o Rodrigo é tão querido. Adora brincar com as meninas.” E acrescenta melíflua, “Anda sempre com uma barbie na mala”. A fingir que não estava a perceber a insinuação, respondo: “Não vejo mal nenhum nisso. Deixá-lo brincar como gosta!”. Atrapalhada, com medo de parecer preconceituosa, diz logo “Claro, claro, professora, eu também não tenho nada contra eles. Antes gay que assassino”. WTF?

# 37 Contextos



A plateia mostrava-se renitente em abandonar a algazarra, a galhofa era de certeza mais interessante que o inglês. Exasperada, lanço mão do economês: “Sabem quanto é que alguns pais pagam no instituto para os filhos terem inglês? Sabem?” Pararam a olhar-me como se estivesse a dizer insanidades. “No instituto paga-se?!” Foi a pergunta desconfiada da Marisa. “Claro que se paga. E não é pouco. Mais de 70 euros por mês.” Digo eu convencida do peso do argumento.” Ai, eu é que não queria ir para o instituto… lá batem” Agora era eu que estava confusa. “Batem? Claro que não.” Diz o Osvaldo: “A ticher tá a brincar. Acho que nem têm inglês no instituto. Eu é que não queria ir para lá. Ainda no outro dia a minha mãe disse que tinha de ir à escola se não a assistente levava-me para o instituto”. E acrescenta a Marisa, “Pois é, o meu irmão mais velho antes de ter ido para a cadeia, esteve no instituto.” Lost in translation.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

#36 Intimidades


Momento twilight zone por excelência é o da primeira reunião com os encarregados de educação. Ver sentados em bancos minúsculos versões envelhecidas e aumentadas dos nossos pequenos é um choque. Reconhecemos uma forma de falar ou uma versão adulta de um nariz com personalidade, acolá está uma cabeleira familiar, aqui um sorriso com covinhas mas sem a frescura que lhe conhecemos… é como aquele choque ao revermos um antigo colega de escola 30 anos, rugas e quilos depois.
Para além do ar de família conhecer os ascendentes ajuda a perceber algumas das atitudes dos miúdos. A Joana adora batom, unhas pintadas e poses de senhora crescida… ao ver a versão adulta da menina percebi logo de onde lhe vinham as modas. Ou então aquela mãe que nunca se cala e interrompe sistematicamente, denunciando de onde vêm os modos do seu “hiperativo” filhote. Mas também é esquisito estarmos perante uma plateia adulta desconhecida e, ainda assim, sermos conhecedores de algumas intimidades familiares. É que os miúdos contam tudo. O João repete sempre que a culpa do atraso é do namorado da mãe, quando dorme lá em casa. A Iara revelou que não traz o equipamento de ginástica quando “fica no pai porque este nunca encontra nada naquela confusão”. Ou o Ivan, que me contou o pé de vento que a mãe fez quando o pai ganhou 300 euros no Euromilhões. Mas porquê? Ganhar é bom, não? “Ticher, ele gastou logo tudo em cerveja no café…” Mas a menos que a gravidade da situação o obrigue a wise teacher sees no evil, hears no evil or speaks no evil.