terça-feira, 15 de setembro de 2015

# 32 Spirits


Não sei quando foi que os miúdos deixaram de ser apenas crianças a serem crianças. Hoje há rótulos para todas as personalidades: hiperativos, ansiosos, deprimidos, bipolares, com défice de atenção, antissociais, obsessivos, compulsivos, narcisistas, histriónicos, baixa autoestima... Poucos são os casos para levar a sério. Muitos são casos clínicos de falta de educação que podem resultar, de facto, num qualquer distúrbio psiquiátrico... Mas para os respetivos professores. Apaparicados pelos pais, os meninos “psicologicamente perturbados”, aka, mal-educados, sentem que podem fazer tudo impunemente. O Vasquinho passou a aula toda de pé e a importunar os colegas. Ralhei-lhe. A meia leca de gente empina-se para mim e diz: “A minha mãe diz que tenho traumaticismos!” Volvo-lhe: “Ah sim? E que tipo de traumaticismo? Bichos-carpinteiros?” Confuso, senta-se e acaba por render-se às gargalhadas da turma. Mas traumatizada fica uma professora quando lhe aparece um pai indignado porque o seu petiz foi repreendido. A birra monumental, que incluiu deitar-se no chão a espernear só porque foi contrariado, tinha, afinal, uma justificação perfeitamente lógica: “O meu filho tem acessos de raiva porque fica possuído dos espíritos da família. É também por isso que às vezes chega atrasado. São os espíritos. Já uma tia-avó dele também encarnava.” Só me ocorreu perguntar se também esverdeava, mas engoli a observação espirituosa, não fosse irritar ainda mais aquele espírito alterado. Vade retro!

domingo, 6 de setembro de 2015

# 31 Humores


Os pequenos não escondem as emoções e, se for preciso, na aprendizagem das mesmas, ficcionam-nas. Quem não está habituado cai sempre na armadilha das lágrimas ou da gargalhada descontrolada. As mood swings em versão infantil podem ser desconcertantes. Vê-los passar de um semblante triste de cortar o coração, à mais descarada felicidade é tão normal como trocar de melhor amigo para sempre. Rir, chorar, gritar ou amuar são expressões ainda não domesticadas e de valor facial próprio. E à falta de análise laboratorial, como distinguir a lágrima genuína das outras? Fingirão a dor que deveras sentem ou sentirão como dor, as dores que deveras não sentem? Qualquer Pessoa ficaria confusa.
A Joana deixava cair lágrimas no que me pareceu uma tristeza profunda. Perguntei-lhe o que se passava. Abanava a cabeça desalentada. Não respondia e continuava a chorar. “Algum menino te fez mal?” Que não, que não era isso. Continuei a aventar hipóteses até que lá se descoseu e, entre fungadelas, disse-me que era o pai, que já não o via há muito tempo, que tinha ido trabalhar para longe. Comovida, pensei na crise e no desemprego que leva tantos pais para longe e abracei-a. Desconfiada e meio enciumada pela atenção que a Joana estava a ter, a Rita aproximou-se para se inteirar da situação. Expliquei que a colega estava triste porque o seu pai estava longe. “Longe?!” Disse a Rita. “Ó Joana, ainda ontem te veio buscar à escola e fomos juntas para a tua casa!” Perplexa, olhei para a Joana, esta encolhe os ombros, sorri, dá a mão à Rita e lá foram as duas à sua vida. Go figure...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

# 30 Bichos


(AVISO: esta crónica versa temas viscosos e poderá ferir os leitores mais sensíveis)

...E ao fim de umas semanas as defesas cederam. Enxames de bichinhos novos e oportunistas atacaram sem tréguas. Primeiro, veio o estrépito: tosse constante, pigarro alérgico a giz, espirros e expectoração a pedir alívio. Depois, pior ainda, sobreveio o silêncio. A voz esgotada e pouco acostumada a exigências traía-me, cobarde, fazendo fintas à minha genica de principiante. De outubro a abril foi este o calvário: constipação, rouquidão, afonia e de novo constipação, rouquidão, afonia... Um loop interminável até os meus entorpecidos anticorpos perceberem em que alhada estavam metidos. Da contenda, saí com imunidade para a vida. Vagas sucessivas de vírus e bactérias resvalam, agora, na couraça das minhas superdefesas. Exposta amiúde a chuva de perdigotos, gotículas de espirro, saliva e muco nasal recordo com incredulidade os tempos em que qualquer inocente perdigotozinho que me atingisse era recebido com um esgar de nojo. Ah, frescuras pré-teacher.