quarta-feira, 21 de outubro de 2015

# 33 Dissonâncias

Ser uma professora que também é mãe é viver em repressão e dilemas constantes. Na sala de aula, engolimos o ralhete aos miúdos que não trouxeram as tampinhas para aquele trabalho de Natal tão original. E, como mães, rogamos pragas (ainda que silenciosas) ao professor que deve achar que temos o tempo dele para andar à procura de tampinhas.
Conhecedoras das manhas infantis, minimizamos as queixas das crias sobre as respetivas professoras. E se amaldiçoamos os trabalhos de casa que infernizam os serões curtos, defendemos a sua importância para o sucesso escolar. 
Nas reuniões de pais, vítimas da empatia profissional, acabamos voluntárias à força para todas e quaisquer “atividades de estreitamento de laços escola-família”. O que, no nosso caso, é sair do trabalho e continuar no trabalho. A mãe que há em nós esconjura essa moda de misturar escola e família. Concordamos mentalmente com aqueles pais que, quando instados a participar na vida da escola, dizem à boca pequena: “ora, ora, também não peço aos professores para irem fazer o meu trabalho!” ou outros, mais enfáticos, que rosnam um "estreitava era os laços nos pescoços de algumas mentes iluminadas..." Pensamentos assassinos à parte, percebe-se a relutância de alguns pais sobrecarregados.
Como professores, alertamos os papás para a importância de toda uma série de boas práticas. Culpadas, remoemos as que nós próprias não cumprimos no nosso papel de mães. Damos sermões aos miúdos sobre a importância da alimentação saudável e à noite, envergonhadas, enfiamos no microondas uma piza congelada, que o tempo não deu para mais. 
A bem da sanidade mental neste jogo duplo, o melhor mesmo é aceitar a sabedoria popular quando apregoa “faz o que digo, não faças o que eu faço”. Tenham dó.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

# 32 Spirits


Não sei quando foi que os miúdos deixaram de ser apenas crianças a serem crianças. Hoje há rótulos para todas as personalidades: hiperativos, ansiosos, deprimidos, bipolares, com défice de atenção, antissociais, obsessivos, compulsivos, narcisistas, histriónicos, baixa autoestima... Poucos são os casos para levar a sério. Muitos são casos clínicos de falta de educação que podem resultar, de facto, num qualquer distúrbio psiquiátrico... Mas para os respetivos professores. Apaparicados pelos pais, os meninos “psicologicamente perturbados”, aka, mal-educados, sentem que podem fazer tudo impunemente. O Vasquinho passou a aula toda de pé e a importunar os colegas. Ralhei-lhe. A meia leca de gente empina-se para mim e diz: “A minha mãe diz que tenho traumaticismos!” Volvo-lhe: “Ah sim? E que tipo de traumaticismo? Bichos-carpinteiros?” Confuso, senta-se e acaba por render-se às gargalhadas da turma. Mas traumatizada fica uma professora quando lhe aparece um pai indignado porque o seu petiz foi repreendido. A birra monumental, que incluiu deitar-se no chão a espernear só porque foi contrariado, tinha, afinal, uma justificação perfeitamente lógica: “O meu filho tem acessos de raiva porque fica possuído dos espíritos da família. É também por isso que às vezes chega atrasado. São os espíritos. Já uma tia-avó dele também encarnava.” Só me ocorreu perguntar se também esverdeava, mas engoli a observação espirituosa, não fosse irritar ainda mais aquele espírito alterado. Vade retro!

domingo, 6 de setembro de 2015

# 31 Humores


Os pequenos não escondem as emoções e, se for preciso, na aprendizagem das mesmas, ficcionam-nas. Quem não está habituado cai sempre na armadilha das lágrimas ou da gargalhada descontrolada. As mood swings em versão infantil podem ser desconcertantes. Vê-los passar de um semblante triste de cortar o coração, à mais descarada felicidade é tão normal como trocar de melhor amigo para sempre. Rir, chorar, gritar ou amuar são expressões ainda não domesticadas e de valor facial próprio. E à falta de análise laboratorial, como distinguir a lágrima genuína das outras? Fingirão a dor que deveras sentem ou sentirão como dor, as dores que deveras não sentem? Qualquer Pessoa ficaria confusa.
A Joana deixava cair lágrimas no que me pareceu uma tristeza profunda. Perguntei-lhe o que se passava. Abanava a cabeça desalentada. Não respondia e continuava a chorar. “Algum menino te fez mal?” Que não, que não era isso. Continuei a aventar hipóteses até que lá se descoseu e, entre fungadelas, disse-me que era o pai, que já não o via há muito tempo, que tinha ido trabalhar para longe. Comovida, pensei na crise e no desemprego que leva tantos pais para longe e abracei-a. Desconfiada e meio enciumada pela atenção que a Joana estava a ter, a Rita aproximou-se para se inteirar da situação. Expliquei que a colega estava triste porque o seu pai estava longe. “Longe?!” Disse a Rita. “Ó Joana, ainda ontem te veio buscar à escola e fomos juntas para a tua casa!” Perplexa, olhei para a Joana, esta encolhe os ombros, sorri, dá a mão à Rita e lá foram as duas à sua vida. Go figure...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

# 30 Bichos


(AVISO: esta crónica versa temas viscosos e poderá ferir os leitores mais sensíveis)

...E ao fim de umas semanas as defesas cederam. Enxames de bichinhos novos e oportunistas atacaram sem tréguas. Primeiro, veio o estrépito: tosse constante, pigarro alérgico a giz, espirros e expectoração a pedir alívio. Depois, pior ainda, sobreveio o silêncio. A voz esgotada e pouco acostumada a exigências traía-me, cobarde, fazendo fintas à minha genica de principiante. De outubro a abril foi este o calvário: constipação, rouquidão, afonia e de novo constipação, rouquidão, afonia... Um loop interminável até os meus entorpecidos anticorpos perceberem em que alhada estavam metidos. Da contenda, saí com imunidade para a vida. Vagas sucessivas de vírus e bactérias resvalam, agora, na couraça das minhas superdefesas. Exposta amiúde a chuva de perdigotos, gotículas de espirro, saliva e muco nasal recordo com incredulidade os tempos em que qualquer inocente perdigotozinho que me atingisse era recebido com um esgar de nojo. Ah, frescuras pré-teacher.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

# 29 Tomates

No primeiro ainda são muito inocentes. No segundo já são mais sabidos. Para além de terem namorados, alguns mais avançadinhos chamam aos abraços que dão: “fazer sexy”! Mas com o terceiro é sempre a subir. É o ano da anatomia. Nota-se logo o frenesim. “Ó ticher, como se diz pénis em inglês?” “E vagina?” E riem-se que nem uns perdidos sem saber bem porquê. Mas não satisfeitos com nomes em inglês tão parecidos com os portugueses, insistem em que lhes revele os homólogos anglófonos de “pilinha” e “pipi”: willy e moo moo. E com nomes destes a risota é ainda maior.
Ora, estava bem de ver que quando começasse a dar o tópico Food a histeria fosse estratosférica. E foi. Logo que viram a palavra no cartaz começaram os espertinhos a ler com todo o denodo: “Fod”. Perante o meu ar sério e o gáudio da plateia, fingem de inocentes: “Mas teacher é o que está lá escrito!”. Claro. Depois vêm os “tomatoes”. Os tomates no cartaz levam sempre ao trocadilho evidente. Este ano a galhofa foi ainda maior porque o brasileiro da turma explica que no Brasil os tomates são ovos. E acrescento eu. “E na Inglaterra são nuts” Se não os podes vencer... junta-te às metáforas alimentares.
Na quarto ano foi mais hardcore. Um queixinhas diz-me “O Vítor estava a gozar, a dizer que tinha tomatoes, ticher!” “Ai tem?” Desafio, farta do raio da conversa dos tomates. “Agora traz tomates para o lanche, é?” Apressa-se um a esclarecer-me: “Não ticher, são as bolinhas”. “Quais bolinhas?” Pergunto esticando a corda. “Os tintins”. Continuei a fingir desconhecimento a contar que acabasse por dizer “testículos”. Qual quê! Com um ar sério de quem já não sabe como esclarecer tal ignorante, sai-se com um “Os c......., teacher!”. No comments.

quinta-feira, 19 de março de 2015

# 28 Daddy


Garanto que o canudinho do diploma do “Best dad” devia estar irrepreensivelmente enrolado e atado com um amoroso lacinho da cor do clube do respetivo daddy. Mas da ideia inicial à peça final vai um longo caminho de percalços. Os extras podem variar entre marcas de pisadelas, dedadas, riscos, rasgões, amarfanhamentos vários ou mesmo extravio. Não que os papás se importem. Como dizia hoje o Rafael, quando lhe disse que devia esforçar-se mais e fazer melhor: “Oh, o meu dad gosta de qualquer coisa que eu lhe der!”. E toca de “estragar” o projeto da teacher. Para um professor é mesmo uma camada de nervos. Tanto esforço para encontrar a lembrança adequada. O desgaste extra para controlar miúdos armados de tesouras, colas, fitas e afins. A trabalheira a cortar, refazer, colar... e depois o que chega a casa é um irreconhecível arremedo do que tinha sido pensado. [Suspiro]
Mas estes dias têm um lado muito mais sensível. A realidade de algumas crianças não se compadece com datas especiais. Há os que recusam fazer a prenda porque já não têm pai; outros que o tendo, nunca o viram e dizem que o “pai é mau” porque foi embora. Outros choram porque “o papá foi trabalhar para longe e só vem no verão” e outros que se regozijam porque, sorte das sortes, este fim-de-semana é com o pai. E depois há a Camila. De sorriso aberto declara-se uma sortuda porque vê o pai todos os fins-de-semana. Pergunto-lhe se está separado da mãe. “Não, ticher, está na cadeia, mas vou visitá-lo todos os domingos”.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

# 27 Constrangimentos


O melhor remédio para curar pudores e pruridos é lidar com miúdos. No mundo xs não há cá subtilezas nem meias palavras. Não sabem o que é politicamente correto e se lhes parece, dizem-no. Alguém com flatulência é impiedosamente apontado e um coletivo de bufos há-de gritar indignadamente: "Ticher, o Afonso peidou-se"; os bufos mais sensíveis dirão "O Afonso deu um pum!" e os engraxadores aproveitarão para perguntar como se diz "pum" em inglês", mas ninguém vai fingir que cheira a rosas. Um elefante no meio da sala nunca é ignorado. E se o elefante for o tamanho avantajado ou diminuto da professora, a cor de pele ou do cabelo ou seja lá o que for que fuja do habitual, os miúdos vão comentar. Não é por mal, nem por bem. É assim mesmo. Se não estás preparada para lidar com isso é melhor pensares noutra profissão.
Tens um canino mais saliente? “Oh, a ticher parece um vampire”; Descuidaste a pintura do cabelo? Vão ser muitos a lembrar-to: “Tens cabelos brancos. Pareces a minha avó.” 
Uma tarde vou de cara lavada e logo um pergunta: “Acordaste agora, não foi ticher?” ou então ainda pior “Estás com ar doente”; noutra ocasião, tendo eu eructado discretamente, diz-me um sorridente “Comeste bifanas ao almoço!”. “Não. Porque dizes isso?” “Cheirou-me!” Até fiquei com azia! 
E quando uma aluna perguntou se ia ter bebé? Fiquei de todas as cores e, claro, bani para sempre aquele top justinho que eu achava que me ficava tão bem. Há dias, após um comentário sobre alturas, levanta-se um e vem medir-se em relação a mim. Triunfante, exclama: “Olha, já chego às mamas da ticher”; logo outro quer medir-se também, e às tantas tinha um bando de miúdos à minha volta a ver se já me chegavam ao peito e a repetir esganiçadamente as suas alturas tendo como referência... “as mamas da ticher”. Se isto não é dar o corpo à docência não sei o que será.