terça-feira, 17 de junho de 2014

# 22 Comichões

No cantinho das memórias nostálgicas da escola primária habitam os piolhos. Não há quem não tenha uma história para contar. Ou porque teve muitos, ou porque escapou incólume ou porque a respetiva mãe conhecia uma mezinha infalível para acabar com a praga. Mas as histórias conjugam-se sempre no passado. Acabamos por crescer e esquecê-los. Virtualmente extintos nas nossas cabeças passaram a ser uma espécie de mito urbano na cabeça dos outros. Ou dos muito velhos ou dos muito sujos. Até que voltamos à escola. E um dia dizem-nos, baixando a voz e olhando em redor: “Professora, devia apanhar os cabelos. Anda aí praga.” Inquiro: “Praga de quê?”; Sussurram: “Piolhos!”. Seria possível? Praga de piolhos numa escola, no século XXI?! Agradeci a informação mas no íntimo achei que seria alarmismo. Habituada aos abraços e mimos dos miúdos continuei como se nada fosse. E o cabelo continuou solto. Seria o risco suficiente para me fazer prescindir da vaidade? Achei que não. Indaguei entre as professoras e houve quem me asseverasse que nos cabelos pintados os piolhos não entram. Alívio. A auxiliar diz-me para não me fiar nisso. “Vinagre, professora. Tem de pôr vinagre após o champô.” E fala-me dos “lavagantes” que apanhou numa cabeleira infantil. Sugestionada começo a sentir comichões e a retrair-me ao contacto com as cabecitas infestadas. Em vão. Aferrada à ideia da tinta protetora recuso-me a considerar a hipótese de ter piolhos. Mas o inconsciente não tem pruridos e chego a ter pesadelos onde vejo colónias de parasitas a pulular no meu couro cabeludo. Acordada, a coceira também continua e acabo por pedir à minha mãe que me veja a cabeça... É então que me atinge o significado das palavras do cabeleireiro: “Só trabalhamos com a ‘Lupa Biológica’, tintas amigas dos animais!”.


domingo, 15 de junho de 2014

# 21 Decibéis

Talvez o sentido mais flagelado de quem trabalha com miúdos pequenos seja a audição. As cordas vocais penam, é verdade, mas os tímpanos são torturados. Achava que tinha experiência de sobra no que toca a ruído: trânsito de Lisboa, sirenes, buzinas, toque incessante de telefones, barulho de máquinas de imprimir... pfff, brincadeira de meninos. Definitivamente, nada se assemelha à tonitruante gritaria de um recreio, ou, num dia mau, de uma sala de aula. Com as suas vozinhas agudas e cristalinas soltam guinchos capazes de competir com um porco em dia de matança. E guincham se estão felizes, se estão zangados, se se magoaram, se querem atenção. Oh, e se querem. A todo o instante. E para isso têm de gritar ainda mais que o coleguinha, num despique sonoro que pede meças ao “iodelei” tirolês. O embate sonoro foi duro. Hoje já aperfeiçoei a espécie de surdez seletiva que me permitiu sobreviver. E o final do ano é sempre o momento de renovar essa habilidade, sobretudo se houver um momento musical que envolva miúdos de pífaro em punho.