segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

#36 Intimidades


Momento twilight zone por excelência é o da primeira reunião com os encarregados de educação. Ver sentados em bancos minúsculos versões envelhecidas e aumentadas dos nossos pequenos é um choque. Reconhecemos uma forma de falar ou uma versão adulta de um nariz com personalidade, acolá está uma cabeleira familiar, aqui um sorriso com covinhas mas sem a frescura que lhe conhecemos… é como aquele choque ao revermos um antigo colega de escola 30 anos, rugas e quilos depois.
Para além do ar de família conhecer os ascendentes ajuda a perceber algumas das atitudes dos miúdos. A Joana adora batom, unhas pintadas e poses de senhora crescida… ao ver a versão adulta da menina percebi logo de onde lhe vinham as modas. Ou então aquela mãe que nunca se cala e interrompe sistematicamente, denunciando de onde vêm os modos do seu “hiperativo” filhote. Mas também é esquisito estarmos perante uma plateia adulta desconhecida e, ainda assim, sermos conhecedores de algumas intimidades familiares. É que os miúdos contam tudo. O João repete sempre que a culpa do atraso é do namorado da mãe, quando dorme lá em casa. A Iara revelou que não traz o equipamento de ginástica quando “fica no pai porque este nunca encontra nada naquela confusão”. Ou o Ivan, que me contou o pé de vento que a mãe fez quando o pai ganhou 300 euros no Euromilhões. Mas porquê? Ganhar é bom, não? “Ticher, ele gastou logo tudo em cerveja no café…” Mas a menos que a gravidade da situação o obrigue a wise teacher sees no evil, hears no evil or speaks no evil.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

#35 Pais


Ah, pois e tal… adoro crianças, adoro ensinar e essas coisas todas. Tudo muito lindo, mas o que nunca se ensina aos aspirantes a professores é a lidar com os pais. E os pais podem ser mais complicados do que os infantes, com a agravante que àqueles não podemos mandar calar se estiverem a ultrapassar as marcas, nem temos autoridade para os corrigir quando dizem enormidades. A bem da verdade, há que sublinhar que a maioria é pacífica, preocupa-se e não causa problemas. O inferno são os outros. Os que minam a autoridade do professor e tomam sempre as dores dos seus príncipes, mesmo antes de saberem o que se passou. Os que folheiam obsessivamente os cadernos em busca daquela gralha que comprova a incompetência do professor. Os que aprenderam a dizer “DREL” e “Agrupamento” e agora ameaçam por tudo e por nada que vão fazer queixa. Os que fazem questão de vigiar os recreios, “pendurados” na vedação a assegurar-se que os rebentos não são molestados. Sim, que ainda esta semana o Manelzinho chegou com um arranhão. Está-se mesmo a ver que nem as auxiliares ou as professoras são capazes de tomar conta dos meninos. Os que dão palpites sobre métodos de ensino, sem nunca terem estudado o assunto mas que acham que sabem, porque afinal não deve de ser assim tão complicado. E, ao fim e ao cabo, de pedagogo e treinador todos temos um pouco. Os que nas reuniões de pais acham que aquele encontro é apenas para falar da sua cria e para quem qualquer pretexto serve para falar de si e do seu educando e de como este é um geniozinho, as mais das vezes, incompreendido pelo sistema. E, depois, há os que vêm ter connosco, elogiam o nosso trabalho e, assim como quem não quer a coisa acabam a mostrar-nos todo o sortido de “Raibãs verdadeiros” ou nos tentam impingir o relógio da moda: “Aproveite, senhora. Para si faço-lhe 10 euros. É um 'suatchi'.”

sábado, 30 de janeiro de 2016

# 34 Anatomias


As idas à casa de banho só porque “me apetece ir dar uma voltinha lá fora” são um clássico. E quando um se lembra, lembram-se logo mais quatro ou cinco. E lá começa o corrupio. Para dissuadir as aflições menos urgentes a regra é que têm de pedir em inglês, e como deve de ser. Ora como geralmente são os menos empenhados que se lembram destes xixi-breaks constantes, a imposição até tira a vontade a uns quantos. Quando a precisão é mesmo muita, contorcidos, de pernas entortadas e joelhos juntos, aos saltinhos e agarrados ao entrepernas, balbuciam qualquer coisa atabalhoada que de inglês tem pouco, mas cujo caráter universal faria inveja a qualquer esperantista. E antes que se abra algum dique apresso-me a autorizar a ida: “Yes, you may go”. “Quê, ticher?” Traduzo “Pronto, vai lá à casa de banho.” Se não estão a aprimorar o inglês pelo menos o valor da linguagem corporal é dado adquirido. Ainda que o corpo, esse desconhecido, possua subtilezas e mistérios que ainda não dominam. No terceiro ano, dita o programa que aprendam os principais órgãos e suas funções. Fiada nisso, pergunto a uma reincidente das idas à casa de banho a toda a hora se tinha algum problema de bexiga. A plateia rebenta às gargalhadas e aos guinchinhos deliciados como se tivesse dito uma piada daquelas mesmo muito engraçadas. Acalmado o chinfrim, volto a perguntar se a Lara tinha algum problema de bexiga. “Ó Ticher! As meninas não têm bexiga, têm vagina!”. - “Ah, sim?!” -“Sim, aprendemos na aula. Os meninos é que têm bexigas. Quer ver?” E sem me deixar argumentar corre para o quadro e desenha algo de familiar... ainda pensei se estaria a ser gozada, mas perante o ar doutoral da explicação percebi que era mesmo a sério. "Tá ver isto aqui? São as bexigas. E as meninas não têm estas bolinhas, pois não?" Rematou com ar triunfal, como quem diz I rest my case.