segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

# 26 Christmas


A época natalícia é sempre uma tormenta para qualquer professor. Como manda a tradição, e o programa também, o tema “Christmas” é incontornável. É um enjoo de sinos, pais natais, árvores de Natal e de desajeitadas sessões de arts and crafts. Era tão mais simples se se acabasse com a tortura da lembrancinha. Poupavam-se as voltas na net para encontrar a peça perfeita para replicar numa turma enorme. Poupavam-se os papás do fingido deslumbramento face a um sino tosco a desfazer-se ou a um anjinho, que de celestial só tem o nome. E no fim de tanto esforço, há sempre um miúdo que se queixa que a “prenda” do ano passado era muito mais gira! Dou comigo a ranger os dentes e a mandá-lo procurar o Santa no Pólo Norte... Depois são as cantorias, mais ou menos esganiçadas, numa língua vagamente inspirada no inglês. Os versos entranham-se na mente e damos por nós a cantarolar  “Vivichiu da meri quissmas ane a épi nu iú”.  Ou então o “Jingle Bells”, que começa em inglês e termina invariavelmente com um “limpa-se ao papel” ou com o twist muito apreciado “...o jornal está caro limpa-se às calças da ticher”. Lindo e em sintonia com o espírito da época.
A data levanta sempre questões delicadas. A mais temida é: “Ó ticher, o Pai Natal existe mesmo?” ou “As prendas são os pais que dão, não são?”. Nunca sei o que responder. Com que direito vou matar a esperança numa fantasia tão gira que fala de um senhor bondoso que distribui prendas a todos os meninos? Por outro lado, deverei perpetuar uma mentira e continuar a mistificação? Às vezes o pedido de esclarecimento é entre uma versão “Pai Natal” e outra “Menino Jesus”. A discussão entre as claques é acesa. Convém dar uma no cravo e outra na ferradura e concordar com o menino que resolveu a disputa: “O Pai Natal é o empregado do menino Jesus, porque este é pequenino para andar a distribuir prendas”. Have yourself a merry little Christmas.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

# 25 Ingliche

Há palavras que fazem as delícias da audiência e só percebi porquê quando ultrapassei a minha “adultez”. Agora digo-lhes logo que “put” não é palavrão e que “page” não é “pum” em inglês. Mas o que os leva a um estado perto do paroxismo é quando escrevo “Food” no quadro. Está-se mesmo a ver, não está? The F word! E escrita pela teacher. Quando chegamos ao tema “animais da quinta” há sempre uns quantos que juram que cabra se diz “bitch” e que ficam incrédulos quando lhes afianço que bitch é cadela (as traduções eufemísticas dão nisto). Desconfiados ficam quando lhes respondo, impávida, que WTF quer dizer “mas que raio!”. Uma, sabida, ainda diz: “mas o meu irmão disse-me que eram palavrões!” “Quais?”Pergunto. Sem coragem para mos repetir em português, cala-se e os outros ficam na dúvida. O nível de conhecimentos de vernáculo é já muito, o de inglês é que nem por isso.
Há dias ouvíamos uma canção que dizia “Hello, boys / Hello, girls”. Pergunto com otimismo: “Adivinham o que são boys?” Está-se mesmo a ver que são... bois! Incrédula: “Bois? Então achas que a música dizia ‘olá bois’?” e acrescento, “Então girls não é meninas?” Responde-me:  “Ah, assim tinha de ser vacas”. Tem lógica.
Informo na primeira ocasião que “sorry, I’m late” não tem nada a ver com laticínios e que o contrário de “big” não é “Sumol”. Mas ainda assim há situações que, para quem sabe inglês, não são compreensíveis à primeira. Quando ensinava as cores, viro-me para um menino e pergunto-lhe “What’s your favourite colour?” Responde-me com toda a convicção: “De batom”. What?! Que raio de cor é essa? Até que percebo a confusão: Cola! Em vez de “colour”, soou-lhe a cola! E de entre as colas prefere as de “batom”. Não é óbvio?

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

# 24 Artes

Na bolsa de valores do primeiro ciclo os dotes artísticos são dos mais valiosos. Saber cantar, dançar, tocar ou desenhar garante automaticamente a admiração e a atenção dos miúdos. Não há como uma cançãozinha para os fazer memorizar. E aquietam-se sempre que alguém puxa da guitarra e dedilha uma moda qualquer... Que inveja desses virtuosos dos instrumentos. É de fazer dó a minha incapacidade para distinguir um ré de um mi, reproduzir um ritmo ou cantar um simples Happy Birthday sem desafinar. Para me safar nas cantorias recorro ao playback e aprendi a refinar a arte do la la la la sempre que me escapa a letra.
A dança é outra arte inatingível. Acertar com uma coreografia básica é um desafio à minha natural descoordenação. Com o tempo fui melhorando. De início ficava de tal modo ansiosa a tentar acertar todos os gestos que, no “Head, shoulders, knees and toes”, trocava as partes do corpo e acabava de cabeça perdida a tentar remediar a trapalhada. Com tanta risota desconfiei que a minha arte era afinal a palhaçada. Seja como for ainda me restavam os desenhos. É claro que são quase sempre cópias à vista de outros, mas pelo menos assim não sofro a humilhação de ter de legendar as obras. A ajuizar pelos rasgados elogios dos pimpolhos os meus desenhos até são aceitáveis. A ideia de estarem apenas a dar graxa à teacher não me ocorreu. Achei sempre que era mais falta de vista, de sentido estético ou simples bondade. Um dia, passando despercebida atrás de algumas alunas, oiço uma delas perguntar apontando para o Easter Bunny, de minha autoria, que decorava um dos posters alusivos à Páscoa: “Quem é que desenhou aquele porco ali?". Pois, um verdadeiro triunfo artístico.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

# 23 Privacidade

A “popularidade” que em tempos a breve incursão pelo jornalismo televisivo me trouxe incomodava-me. Bastava um relance de uma madeixa minha e lá vinham as vizinhas congratular-me pela aparição pública. Acabei por escolher o anonimato. Prezo demasiado o poder andar despreocupadamente pelas ruas... Até que me tornei “teacher” e esses dias acabaram. No primeiro ano de trabalho calharam-me dez turmas, em média com vinte miúdos cada. Mais os outros todos que nos reconhecem dos intervalos. Do dia para a noite tornei-me “popular” na minha cidade. No supermercado, numa esplanada, num jardim é invariável ouvir: “Olha, está ali a minha ‘ticher’? “Quem?!” - perguntam os pais. “A minha professora de inglês!”. Sorriem envergonhados, acenam, e obrigam os adultos a olhar para a “ticher” deles. E eu, de sorriso amarelo a amaldiçoar ter adiado a ida ao cabeleireiro ou o ter vestido a primeira coisa que me veio à mão. Os mais afoitos correm, querem um beijinho e alguns assustam-me quando vou pela rua de headphones nos ouvidos e me agarram à traição! E falando de sustos, foi grande o que apanhei quando encontrei um dos pirralhos na natação. Mal o vi pensei logo nos comentários da turma na segunda-feira. Okay, estou com ar de inseto gigante de fato de banho, óculos e touca enfiada, mas pronto, podia ser pior. E foi. À saída do duche oiço uma vozinha familiar: “Olá, teacher!”. Só quis um buraco para me enfiar. Que raio faz um miúdo de nove anos no balneário das senhoras? Para as mamãs extremosas os filhos são bebés a vida toda, mas eu sou só a teacher deles, got it?

terça-feira, 17 de junho de 2014

# 22 Comichões

No cantinho das memórias nostálgicas da escola primária habitam os piolhos. Não há quem não tenha uma história para contar. Ou porque teve muitos, ou porque escapou incólume ou porque a respetiva mãe conhecia uma mezinha infalível para acabar com a praga. Mas as histórias conjugam-se sempre no passado. Acabamos por crescer e esquecê-los. Virtualmente extintos nas nossas cabeças passaram a ser uma espécie de mito urbano na cabeça dos outros. Ou dos muito velhos ou dos muito sujos. Até que voltamos à escola. E um dia dizem-nos, baixando a voz e olhando em redor: “Professora, devia apanhar os cabelos. Anda aí praga.” Inquiro: “Praga de quê?”; Sussurram: “Piolhos!”. Seria possível? Praga de piolhos numa escola, no século XXI?! Agradeci a informação mas no íntimo achei que seria alarmismo. Habituada aos abraços e mimos dos miúdos continuei como se nada fosse. E o cabelo continuou solto. Seria o risco suficiente para me fazer prescindir da vaidade? Achei que não. Indaguei entre as professoras e houve quem me asseverasse que nos cabelos pintados os piolhos não entram. Alívio. A auxiliar diz-me para não me fiar nisso. “Vinagre, professora. Tem de pôr vinagre após o champô.” E fala-me dos “lavagantes” que apanhou numa cabeleira infantil. Sugestionada começo a sentir comichões e a retrair-me ao contacto com as cabecitas infestadas. Em vão. Aferrada à ideia da tinta protetora recuso-me a considerar a hipótese de ter piolhos. Mas o inconsciente não tem pruridos e chego a ter pesadelos onde vejo colónias de parasitas a pulular no meu couro cabeludo. Acordada, a coceira também continua e acabo por pedir à minha mãe que me veja a cabeça... É então que me atinge o significado das palavras do cabeleireiro: “Só trabalhamos com a ‘Lupa Biológica’, tintas amigas dos animais!”.


domingo, 15 de junho de 2014

# 21 Decibéis

Talvez o sentido mais flagelado de quem trabalha com miúdos pequenos seja a audição. As cordas vocais penam, é verdade, mas os tímpanos são torturados. Achava que tinha experiência de sobra no que toca a ruído: trânsito de Lisboa, sirenes, buzinas, toque incessante de telefones, barulho de máquinas de imprimir... pfff, brincadeira de meninos. Definitivamente, nada se assemelha à tonitruante gritaria de um recreio, ou, num dia mau, de uma sala de aula. Com as suas vozinhas agudas e cristalinas soltam guinchos capazes de competir com um porco em dia de matança. E guincham se estão felizes, se estão zangados, se se magoaram, se querem atenção. Oh, e se querem. A todo o instante. E para isso têm de gritar ainda mais que o coleguinha, num despique sonoro que pede meças ao “iodelei” tirolês. O embate sonoro foi duro. Hoje já aperfeiçoei a espécie de surdez seletiva que me permitiu sobreviver. E o final do ano é sempre o momento de renovar essa habilidade, sobretudo se houver um momento musical que envolva miúdos de pífaro em punho.