quinta-feira, 4 de setembro de 2014

# 24 Artes

Na bolsa de valores do primeiro ciclo os dotes artísticos são dos mais valiosos. Saber cantar, dançar, tocar ou desenhar garante automaticamente a admiração e a atenção dos miúdos. Não há como uma cançãozinha para os fazer memorizar. E aquietam-se sempre que alguém puxa da guitarra e dedilha uma moda qualquer... Que inveja desses virtuosos dos instrumentos. É de fazer dó a minha incapacidade para distinguir um ré de um mi, reproduzir um ritmo ou cantar um simples Happy Birthday sem desafinar. Para me safar nas cantorias recorro ao playback e aprendi a refinar a arte do la la la la sempre que me escapa a letra.
A dança é outra arte inatingível. Acertar com uma coreografia básica é um desafio à minha natural descoordenação. Com o tempo fui melhorando. De início ficava de tal modo ansiosa a tentar acertar todos os gestos que, no “Head, shoulders, knees and toes”, trocava as partes do corpo e acabava de cabeça perdida a tentar remediar a trapalhada. Com tanta risota desconfiei que a minha arte era afinal a palhaçada. Seja como for ainda me restavam os desenhos. É claro que são quase sempre cópias à vista de outros, mas pelo menos assim não sofro a humilhação de ter de legendar as obras. A ajuizar pelos rasgados elogios dos pimpolhos os meus desenhos até são aceitáveis. A ideia de estarem apenas a dar graxa à teacher não me ocorreu. Achei sempre que era mais falta de vista, de sentido estético ou simples bondade. Um dia, passando despercebida atrás de algumas alunas, oiço uma delas perguntar apontando para o Easter Bunny, de minha autoria, que decorava um dos posters alusivos à Páscoa: “Quem é que desenhou aquele porco ali?". Pois, um verdadeiro triunfo artístico.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

# 23 Privacidade

A “popularidade” que em tempos a breve incursão pelo jornalismo televisivo me trouxe incomodava-me. Bastava um relance de uma madeixa minha e lá vinham as vizinhas congratular-me pela aparição pública. Acabei por escolher o anonimato. Prezo demasiado o poder andar despreocupadamente pelas ruas... Até que me tornei “teacher” e esses dias acabaram. No primeiro ano de trabalho calharam-me dez turmas, em média com vinte miúdos cada. Mais os outros todos que nos reconhecem dos intervalos. Do dia para a noite tornei-me “popular” na minha cidade. No supermercado, numa esplanada, num jardim é invariável ouvir: “Olha, está ali a minha ‘ticher’? “Quem?!” - perguntam os pais. “A minha professora de inglês!”. Sorriem envergonhados, acenam, e obrigam os adultos a olhar para a “ticher” deles. E eu, de sorriso amarelo a amaldiçoar ter adiado a ida ao cabeleireiro ou o ter vestido a primeira coisa que me veio à mão. Os mais afoitos correm, querem um beijinho e alguns assustam-me quando vou pela rua de headphones nos ouvidos e me agarram à traição! E falando de sustos, foi grande o que apanhei quando encontrei um dos pirralhos na natação. Mal o vi pensei logo nos comentários da turma na segunda-feira. Okay, estou com ar de inseto gigante de fato de banho, óculos e touca enfiada, mas pronto, podia ser pior. E foi. À saída do duche oiço uma vozinha familiar: “Olá, teacher!”. Só quis um buraco para me enfiar. Que raio faz um miúdo de nove anos no balneário das senhoras? Para as mamãs extremosas os filhos são bebés a vida toda, mas eu sou só a teacher deles, got it?