quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

# 14 Venenos

Só quem não lida amiúde com criaturas pequenas ainda acredita no Pai Natal. Ou, trocado por miúdos, embarca na universalidade da inocência dos ditos. Para garantir que os números ficam mesmo bem aprendidos costumo recorrer ao Bingo. A primeira vez que fiz o jogo foi um desastre. Para além da comoção e dos nervos gerais típicos de qualquer jogo, o Bingo tem perigos adicionais. Como não depende da sapiência nem do esforço, a crença na vitória é geral. E mesmo perante a iminência do triunfo alheio, a expectativa de todos é elevadíssima até ao fim. Crente na bondade das crianças, não acautelei a possibilidade de alguns tentarem forjar os números dos cartões ou, pura simplesmente, gritarem “Bingo” sem que tivessem os números. Mas o maior problema foram os adereços utilizados. À falta de melhor lembrança usei grãos-de-bico para marcar os números. Para não andar de um lado para o outro deixei logo um montinho em cada uma das mesas. Está-se mesmo a ver, não está? De imediato chovem grãos e lamúrias dos atingidos. Ameaço parar imediatamente com a atividade e lá se serenam. Mas por pouco tempo. A seguir começam a perguntar se podem comer (!) os grãos. Irritada, grito que não. À cautela, acrescento logo que também não os podem enfiar no nariz ou nos ouvidos. Para simplificar, digo-lhes que têm veneno. Recomeço o jogo. Novo burburinho. “O que é que se passa agora?” Vejo o Afonso todo vermelho e com um ar de culpado. Nem consegue falar. Diz o colega: “Ticher, o Afonso comeu grãos!” O Adilson de sorriso beatífico e no seu português açucarado sentencia logo para desespero do outro: “Não chora Afonso... Agora vais para uma grande caixa, ter com Nosso Senhor lá no céu, não é ticher?”. Are you kidding me?

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